segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

À rasca

O que faz um Alfacinha à Rasca se no trabalho o cenário está longe de ser brilhante e se aquela merda que (quase) todos temos a bombear sangue quente já conheceu dias bem mais saudáveis? O que faz um Alfacinha à Rasca num país em que o capitão do barco diz para saltar borda fora? Já viram algum filme de piratas em que os rapazes não saltem quando a água começa a subir?

Começa por calar o telemóvel e acender um cigarro. O resto vem depois. Segue-se uma contagem de soldados. Os mais próximos, os mais afastados e os bons. Entre eles, os alfacinhas com mais sorte encontram um irmão. DEpois, é preciso escolher um destino. Barato, que o Mundo não está para loucuras, com espaço e a que não falte, nos momentos precisos, movimento. Naturalmente, tem de ser perto da praia. Não esquece a escolha da banda sonora. Nada de eufórico, nada de lamechas, nada demasiadamente deprimente. Cash, Hendrix, Rage Against the Machine ou Coltrane são sempre boas escolhas.

Um Alfacinha não é fácil de abater. Muito menos se estiver à rasca. Há quem lhe chame filosofia de Barata. Venha o que vier, seja em Lisboa, na Praia ou noutro continente, um alfacinha sobrevive. Mesmo à rasca.



Enjoy

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Senhor Primeiro Ministro II

Já dorme? Não adormeça Senhor Primeiro Ministro. A chegar à parte animada da história e adormece? Aguente lá mais um bocadinho e vai ver que fica a perceber como aqui chegámos. E logo nós, os que viemos de tão longe. Acorde lá o seu iPad.

Foi bonita a festa. Com cheiro de cravos, correu-se com empoeirados e bafientos e ainda se lançou uma bela discussão: então e agora? Improvisou-se um pouco sensato conselho da revolução e até se fizeram eleições. Isso sim foi uma novidade! Votávamos e volta não volta lá vinha um surpresa.

Foi giro, mas nem por isso andámos para a frente. E o pior estava para vir. Sim, Senhor Primeiro Ministro, aquele rapaz do poster que tem no quarto tornou-nos ainda mais saloios. Camiões de dinheiro vindo dos nossos então amigos europeus e uma nulidade absoluta de ideias inteligentes. Sabe, os anos em que o seu mentor mandou cá na terra foram uma chatice.

Mas olhe que nós por cá sempre nos fomos orientando. Melhor ou pior, tivemos por cá gente de gabarito. Olhe, Senhor Primeiro Ministro, sejam os Picasso ou os Hemingway, os nossos Vieira da Silva e Eça não se batem mal com ninguém. Ironias? Tivemos o Camilo. E para fechar oferecemos o nosso Saramago. Sabe, Senhor Primeiro Ministro, que foi o saloio do seu mentor que o empurrou para os vizinhos?

Seguiram-se uns governos orientados, uns desorientados e outros que até chegaram a ser divertidos. Não me diga que se esqueceu de ver o seu colega Paulo na tomada de posse? Quer que lhe conte a história dos submarinos? Ou que lhe lembre o seu antecessor, o Pedro, à procura das folhas do discurso? Momentos brilhantes. Quer ouvir um? Ora pegue lá nisso e escreva no You Tube: Ornatos Ouvi dizer.



Sabe senhor Primeiro Ministro, chegámos ao fundo do poço. Se já ganhávamos mal, agora será ainda pior. Dizem-nos que temos demasiado direitos e que vamos ter de trabalhar mais. Menos feriados, menos dias de férias e até os subsídios se foram. Digo-lhe que não percebo. Se os vejo, aos seus colegas, a dar dinheiro aos bancos, se os vejo de Porsche e na Quinta da Marinha porque raio nós temos de levar com um aumento no bilhete do autocarro. Até sei que o Senhor Primeiro Ministro mora em Massamá. O que lhe dizem os vizinhos? O senhor do café ainda lhe traz a bica curta?

Ouvi-o dizer aos mais novos para emigrar. Eu percebo-o, descanse. Nunca tinha tido um emprego e de repente dá por si aos comandos de um barco demasiado grande para as suas delicadas mãos. Está assustado, é normal. Não vê saída e, como até tem bom coração, deixou que o desabafo lhe saísse pela boca. Não é grave. Podia ser pior. Imagine que era o sôr Relvas a mandar nisto? Vendiam-se já os jovens aos chineses.

Mas sabe, senhor Primeiro Ministro, tenho para mim que os putos não se vão embora. Mais facilmente os vejo partir uma ou duas montras, que a largar o barco. Mesmo com um capitão desgovernado, gostam disto por cá e, se forem dos meus, até acham que a terra é boa.

Veja lá senhor Primeiro Ministro se ouve o que lhe digo. Não faça as vontades todas à Senhora alemã, acredite que a única coisa decente no Senhor Sarkozy é a sua senhora e não se esqueça que temos, pelo menos, direito a fazer a barulho. Faça como os nossos sempre fizeram. Esgravate, faça barulho, bata com o pé no chão ou parta qualquer coisa. Pode ser que assim o oiçam, pode ser que assim os mais novos, os que não vão emigrar, não tenham de fazer o mesmo.

Não chore Senhor Primeiro Ministro. Faltam meia dúzia de meses para lhe darem a desculpa para sair de cena. Nessa altura, não escolha Paris como refúgio que já não é novidade. Nessa altura, os mais novos estarão por cá, comigo a tomar conta deles, para continuar a suportar a ondulação.

Como acaba? Não sei, mas será uma história com moral. Para já, Senhor Primeiro Ministro, pode ir andando. Lave os dentes, vista o pijama, trate de se aliviar e vá dormir. Não se esqueça: "Meninos que brincam com o fogo, fazem chichi na cama".



Enjoy

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Senhor Primeiro Ministro I

Psssst. Senhor Primeiro Ministro, sente-se aqui. Quero-lhe contar uma história. Sim, pode trazer o iPad. Já soube que perdeu um na visita a Angola e não tenho dinheiro para pagar outro. Sabe, parece que falimos. São dois minutos. Conversa breve e conto-lhe a história da nossa terra. Um país antigo, com mais de 800 anos de históra...

Onde vai? Tenha calma senhor Primeiro Ministro. Não tem paciência para histórias demoradas? Tenha calma. Vai ver que não custa e até lhe dou uma musiquinha. Carregue lá nisso. Youtube, procurar e é só escrever - zeca afonso mais cinco.



O Norte da península nem era feio, mas as complicações das partilhas obrigaram a uma caminhada para Sul e o sol até era mais simpático. E os nossos lá decidiram ficar. Está a ouvir senhor Primeiro Ministro? Tenha paciência que isto já anima. Experimente agora isto. Escreva - Gilberto uma nota só.



Vindos do Norte, tiveram de lutar pela terra para assentar na costa e depois brilhar no mar. Não lhe minto Senhor Primeiro Ministro, não sei em que praia foi, mas garanto que no dia em que um dos nossos decidiu ir ver se o mar tinha fim as ondas estavam boas. E olhe que a coisa até correu bem durante uns tempos. Massacre aqui, massacre ali, acordo aqui e negociata ali e lá fomos andando. Mas só até ao dia em que começámos a pedir dinheiro para pagar a frota. Lá por baixo? Correram connosco à porrada. E nessa altura já estava tudo estragado.

Talvez pelo excesso de Sol - já o tinham avisado que faz mal? tenha cuidado na próxima ida a Angola ... -, por azar ou por deformação genética, algures nas últimas centenas de anos perdemos as vistas. Andámos demasiado tempo de Botas quando o Mundo já corria com Nikes nos pés e ainda hoje pagamos por isso. Ora agora, escreva: Filho da Mãe. Sobretudo é preciso que acredite nisto: não lhe minto.



Deixe-se estar sentado e não fique triste. Mesmo embrutecidos, os nossos antepassados, nunca perderam a classe e na hora da revolução armaram-se com Cravos. Meia dúzia de tiros, um morto por engano e um regime derrubado. Sabe Senhor Primeiro, acabou por nem ser assim tão difícil. Aqui ao lado a coisa só se resolveu com uma Guerra Civil e felizmente os nossos nem a um canhão deram ordem para disparar.



Conhecia esta? Ah sim, os seus pais contaram-lhe a histórias do comunas? Pois olhe que os vejo como gente de boas intenções. Se me permite, Senhor Primeiro Ministro, vou-lhe ensinar uma palavra: obtuso. Se é verdade que sempre me pareceram boa gente, também não deixa de ser verdade que sempre me pareceram demasiado ... obtusos. Mas olhe, tenho uma coisa em comum com os moços: também perdi a história. Escreva lá "fado toninho". Onde íamos?



to be continued ...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Fora

Era o Fora. Um daqueles tristes casos em que a alcunha de infância se pega aos ossos. O Manuel que nunca foi Manuel, o Pedro que nunca foi Pedro ou o Carlos que nunca passou de Fora.

Vivia convencido que as pessoas eram mais que os seus corpos. Karma? Alma? Espírito? Ainda não tinha decidido o que lhe chamar. Faltava-lhe a palavra, mas vivia convencido que o Manuel, o Pedro ou o Carlos tinham algo ... fora. E se os ossos já começavam a mostrar os quilómetros, lá fora, as marcavas também se faziam notar. O Fora, vivia convencido que infâncias felizes, adolescências traumáticas, casamentos ou mesmo fins de tarde perfeitos, tinham o seu cunho.

Estranho o Fora. Gostava do seu copo com amigos, da sua manhã de praia e conhecia todos os segredos da sobrevivência feliz em jantaradas. E sempre, sempre, convicto que importante era a parte de fora. A melhor definição que conhecia? Coração. Elogios à beleza, à sagacidade, ao sentido de humor ou a um qualquer talento atlético, tornavam-se triviais quando era o Coração a ser gabado. Quem não gosta de ouvir: "Tens um bom coração."

Homem de bom coração, o Fora. Aluado, como alguns lhe chamavam, distraído ou mesmo preguiçoso. O Fora não era conhecido por ser rápido, mas já tinha ouvido mais que um elogio ao Coração. Tinha as suas marcas e as suas vitórias e aparentemente o resultado não tinha, para os que notavam, sido mau. Algo mais importante que um bom coração? O Fora achava que não.



Enjoy

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Abre os olhos

Giro o mundo dos downloads. É divertido chegar a casa com as últimas novidades. Estar selectivamente contactável a qualquer hora pode tornar-se viciante. Tudo mais rápido, tudo mais variado, mas tudo bem mais perecível. Tudo desaparece rápido no mundo dos downloads, é a vida 2.0 onde se perdeu o tempo para saborear os Momentos. 

Não há como o negar. Seja um prego numa pastelaria para os lados de Algés, um passeio pela Fundação Champalimaud ou uma visita a um cantinho especial em Lisboa, é bem longe do mundo 2.0 que os momentos se agarram. Nem tem de ser um miradouro na Graça ou o Jardim da Estrela, pode ser uma tosta numa esplanada povoada por irritantes mosquitos ou à beira de uma estrada na Costa da Caparica. A experiência diz-me que é a companhia que faz o momento. No mundo dos downloads os discos não se compram olhos nos olhos. No mundo a 2.0 a banda é sacada, no meu a escolha dos discos diz tudo.

Será roqueira? Fã de Chico? Se gostar de Jazz é de pedir o número de telefone. E se for mulher de ainda dar um pulo à música sinfónica, o melhor é casar logo na bilheteira da FNAC. Pararam para ouvir o mesmo disco? Fnac, Chiado, sete da tarde num mundo pré-falência, haverá momento mais caótico na vida de um alfacinha? Mas e se um dia, decidirem parar? Mesmo que até já tenham o disco no mp3 ou que o saldo recomende tudo menos uma edição em Vinil do Abbey Road?

Há quem deixe escapar os momentos. É preciso andar de olhos bem abertos e é sempre mais fácil ignorar que correr atrás. Sem risco e com a garantia da repetição, é tentador seguir a rota tradicional, mas desfazem-se as hipóteses de começar a noite a lanchar no Kafeehaus. De iPod desligado e numa loja de discos? Abre os olhos.. 

A selecção até se quer inconsciente, mas a banda sonora é biográfica e se for boa, a história de quem namora as capas também o será. 

Não conheço reaccionárias que gostem do Zeca Afonso, nem saloias que soletrem todas as letras do Chico. É garantido que nenhuma urbana gosta de reagge e que não há stressadinha com paciência para os Radiohead. Conhecem alguma preconceituosa  que goste de Hip Hop? Ciência não é - poucas coisas o são - mas a escolha da banda sonora é feita de marcas. Tanto serve de aviso como de isco.

Seja por ter companhia, um disco dos Europe lá pelo meio ou por estar demasiada gente à volta, quem nunca desperdiçou um momento? Quem não esqueceu a maioria deles? Os que ficam, tenham sido em esplanadas ou a na Praia Grande a comer Perceves, deixam marca. E essa fica gravada na banda sonora. Um fim de tarde na Fnac será sempre melhor que um passeio pelas melhores sugestões do iTunes e garantidamente que não há aplicação capaz de substituir a honestidade de um olhar. Esses deixam adivinhar a banda sonora. Esses merecem todas as corridas. Esses fazem os grande momentos.



Enjoy

sábado, 15 de outubro de 2011

15 de Outubro



Vinha exausto. Profissionalmente, sobrevivera à semana mais agitada do ano e, entre o culminar de uma aventura e uma hecatombe, nem sequer tinha tido tempo para pensar. Mesmo respirar tinha sido coisa rara, na semana em que também  o coração partiu.

Ouvia gritos, via-os indignados. Alguns divertidos, outros nem tanto. Alguns carregados de cartazes, outros mais entretidos com malabarismos. Cerveja, tambores, bolinhas de circo ou simplesmente penteados. Não faltou entretenimento ao 15 de Outubro.

Crise e sol, ambos demasiado duros para esta época. Gente no limite, gente sem oportunidades, gente sem mais paciência. Entre os milhares na rua - fossem os dez mil da polícia ou os cem mil da organização - só existia um ponto em comum. A paciência tinha esgotado. Não havia como disfarçar. Fosse porque os iMacs estão cada vez mais caros, pelo choque de saber que em 2011 ainda se morre à fome ou pela afronta que quem manda volta a fazer, entre os Indignados não havia quem não estivesse a pensar "Basta".

Encontraram-se velhos amigos, trocaram-se sorrisos, abraços e histórias de guerras: antes do 25 de Abril é que era ... ; e o gajo que mostrou o cú à Manuela Ferreira Leite?; a da Ponte é que foi ... ; e os Secos e Molhados? Entre as memórias, um denominador quase comum: o nosso Presidente da República. Fosse por ter nomeado a Manuela para ministra da Educação, fosse por ter inventado a PGA, por ter dado a ordem da carga na ponte ou por ter equipado os polícias de serviço com mangueiras, o velho Aníbal está em todas. Em quase todas. Antes do 25 de Abril era só "alinhado", não participava.

"Sejam realistas, peçam o impossível". "Vão à bardaMerkel". "Catastroika". "Tira-me o Natal, dou-te greve geral". "Vão privatizar a puta que vos pariu". "Quem deve dinheiro é banqueiro". Eram mesmo "muitos e não tinham medo". Um mimo para o Aníbal: "Cavaco, a brincar aos sérios desde 1985".

Um coração partido pesa mais. O corpo fica menos disponível. A face menos elástica. E as conversas deixam de fluir. Tudo fica mais vagaroso. O Indignado, optou pelo papel de observador. Afinal a luta até era internacional, estavam cidades ocupadas em mais de sessenta países e nas ruas a quantidade de polícia não enganava. A principal batalha até já estava ganha.

No reino dos iPad, iPod, iPhone das sociabilidades cibernéticas e dos indies, ainda há quem saia para a rua com uma atitude punk rock. Sem partidos, sem planos retorcidos, mas com a ingenuidade de achar que ainda se muda o Mundo. Saíram indignados, saíram pelo 15 de Outubro como tinham saído a 12 de Março e o Indignado voltava a acompanhar. O Indignado perguntava: será que serão capazes?

De coração partido mas olhos bem abertos, viu agressões, murros e gritaria. Contra o marchar do Corpo de Intervenção ajudou a segurar os últimos ocupantes da escadaria e teve de se conter para não soltar um ou dois impropérios. Mas da mesma forma que se surpreendeu pela elevada percentagem de polícias civilizados e competentes, não deixou de pensar que os outros, os que se sentem enormes na protecção de uma armadura e com um bastão nas mãos, nem os gritos mereciam.

Voltou melhor para casa. Esgotado, de coração partido, mas com uma confiança redobrada. Se ainda há quem se acredite capaz de mudar o Mundo, quem por isso arrisque a integridade física e quem corra sem segundas intenções. Se ainda sobrevivem os loucos capazes de gritar frases quem gritam "os democratas são os novos fascistas" ou de protestar com frases clássicas do cinema escritas a marcador preto em cartão - "Everybody be cool this is a robbery" - porque raio não conseguiria ele, um simples indignado, resolver problemas bem mais simples. Da mesma forma que os Indignados conquistaram a escadaria e ficaram a sonhar com a invasão aos corredores de São Bento, também ele seria capaz de continuar a caminhar.

Na noite em que a sua geracção descobriu que as barreiras policiais são quebráveis, exausto e de coração partido, pensou no que perderia, mas também nas cenas tristes a que se pouparia, pensou no sorriso e no olhar que nunca mais veria, mas chegava a casa convencido que merecia mais, que a vida, ou mesmo o Mundo, podia ser melhor. Tinha visto como às vezes um sprint em direcção ao Corpo de Intervenção pode ser bem sucedido, mas também que há alturas em que o melhor é ceder e abandonar a Escadaria. A luta, pela vida e por um Mundo mais limpo, continua pela estrada fora. A frase estava num dos cartazes: "Sejam realistas, exijam o impossível".

Enjoy

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Zé, o trompetista cego

Vivia entre a Praça da Alegria e o Parque Mayer. Sonhava nos bancos da Avenida da Liberdade.

Tinha crescido entre guitarristas de fados, putas e uma bebida que lhe parecia vinho verde. Actrizes e coristas também nunca tinham faltado. Sportinguista, ao Domingo raramente perdia a bola e se o jogo fosse à hora de outros palcos, penitenciava-se com todos os resumos. Sem saber para que servia o facebook de que os amigos tanto falavam, lembrava-se da última visita do Cherbakov e tinha saudades do velhinho Hot Clube. Diziam-lhe que era o típico tuga, e que não fosse a peculiar escolha de instrumento, poderia dar um belo fadista.

O Zé tocava trompete. Sim, o Carlos Paredes era o mais parecido que conhecia de Deus. E sim, nunca tinha ouvido um verdadeiro fado sem alma. Mas nada chegava ao som do trompete. De tristeza, dor ou alegria, quando chegava a hora de ouvir uma alma cantar, era o trompete quem oferecia a melhor voz. Miles e Chet, por sinal o nome dos dois gatos com quem partilhava o húmido T2, tinham tornado a escolha evidente e quando descobriu que até dava para pagar a renda não pensou duas vezes. A vida seria vivida ao som de bronze.

Sabia como facturar. Um bom espectáculo no Parque Mayer aguentava uns meses, com sorte aparecia uma banda de putos à procura de um quarteto e até ia sendo chamado para acompanhar em estúdio. Pagava a renda, poupava na roupa e nem era esquisito na hora de escolher o lugar no estádio. A volta para comprar comida, o "dia seguinte" no café e os noticiários mantinham o ritmo de dias que teimavam em terminar com o trompete a chorar.

Ia sabendo das novidades. Sabia que o mundo tinha falido, que o Porto se tinha safo no mercado de verão e que pior que a banca e o Sporting só mesmo uma coisa: Portugal. Trompetista remediado, mas nunca parvo, o Zé até tinha a sua conta, uma espécie de colchão, ao pé do Campo Pequeno, a proteger umas poucas centenas de euros e meia dúzia de certificados de aforro, dos que mais tinham desvalorizado. Que o Zé também nunca tinha sido acusado de ter sorte. Ouvia falar das praias africanas, das ruas de Nova Iorque e da movida de Madrid, mas nunca tinha subido de Bragança e a mais longa das investidas ao Sul acabara em Tavira.

Era cego, o Zé. Não bebia, não fumava e branca só mesmo a casaca. Mas era viciado. Precisava de doses Dizzy Gillespie para ganhar energia, os dois anos de Lee Morgan ajudavam a sossegar e o Miles servia de sobremesa. No Chet Baker encontrava o conforto quando mais precisava. Chuva ou sol, se lhe garantissem a dose de banda sonora do dia, não precisava de mais nada. Consumia no sofá da sala e só o trocava pelo verdadeiro palco dos sonhos.

Imaginava-o longo, com três ou quatro centenas de metros, mas nunca o medira. O número exacto de passos mataria o sonho e não trocava a Liberdade por nada. Era ali que sonhava. O som do vento nas árvores, a vitória do chilrear dos pardais sobre o esvoaçar das asas dos pombos e as conversas de quem lhe caminhava com indiferença. Ali, com o trompete escondido na casaca que lhe diziam "quase branca", sonhava.

Ser cego estava longe de ser fácil, mas nem por isso o Zé se importava. Desabafa e celebrava com o trompete e viajava à conta de quem passava perto da sua Liberdade. Diziam-lhe que "o mais cego é o que não quer ver" e na volta até tinham razão.

"Um tirinho de Chet, se faz favor"



Enjoy

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O "cabeça de wax"

A regra era simples. Em dia de folga, o despertador tocava mais cedo.Vivia, trabalhava e geria toda a agenda a pensar na hora de molhar os pés. Sonhava com drops perfeitos, com picos perfeitos, com lips e com tubos. Muitos tubos. Mais ou menos redondos, mais ou menos agressivos, com ou sem direito junção a seguir, eram os tubos quem lhe fazia companhia nas horas de descanso.


Os amigos, não percebiam. Porquê acordar cedo? Água gelada? Correntes, mar castigador e portagens. Chamavam-lhe "cabeça de wax" e talvez tivessem razão. Gostava de ler, de um bom filme ou de uma simpática conversa entre amigos. É certo que devia ler mais, mas o hábito de adormecer a pensar em ondas limitava as opções de leitura.


E aquela fracção de segundo? Em que o balanço do corpo faz a diferença, em que o rail tem de ir bem cravado, mas sem abrandar. O momento em que, como um amigo lhe dissera, "se separavam os que voam dos que se ficam pela onda". E o "cabeça de wax" gostava de estar entre a elite. Perdia horas a recordar a última tentativa, a corrigir erros imaginários e a armazenar coragem para a hora H.


Diziam-lhe que não pensava em mais nada. Diziam que tinha de crescer. De gostar de ténis e de discutir a direita do Verdasco e os joelhos do Nadal. O "cabeça de wax", que até simpatizava com o sérvio que equipou à Benfica, preferia seguir o mundial de bodyboard. Torcia pelo Hubbard, dificilmente perdia um heat do Guilherme Tâmega e estudava todos os pormenores do Ryan Hardy. O "cabeça de wax" sonhava com o "bodyboarder perfeito". E nem ligava nenhuma às piadinhas de gays que a expressão motivava.


Se a alcunha o irritava? Nada. Provavelmente os amigos até teriam razão. O wax era mesmo o creme que mais usava e as ondas eram o seu vício. Mas no final, quem teria razão? O "cabeça de wax" ou os rapazes das discussões sobre punhos, pegas e cinema duvidoso?




Enjoy  






quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Haddock

Impressa numa folha A4, forrada a fita adesiva e pespegada num dos postes da Avenida de Berna, a fotografia não fazia justiça à história.

Haddock, um cinzento papagaio, tinha fugido deixando para trás a menina dos cândidos caracóis. Uma janela aberta, o apelo de alguma Caturra ou a simples curiosidade, tinham-no levado a abandonar o poleiro onde passara os últimos seis anos. Papagaio de bom gosto, os jardins da Gulbenkian seriam sempre uma das primeiras paragens.  Seguir-se-iam, o da Estrela e do o Príncipe Real. Já chorava a menina dos cândidos caracóis.

Mas a fotografia não fazia justiça à história. Em casa, choravam os caracóis e nem a promessa de recompensa fazia o telefone tocar. Haddock, hoje pirata de má fama nas traseiras da Conde Valbom, tinha acompanhado as suas tardes em casa, os jantares de família e as noites de futebol. Tinha aprendido a imitar o sino do Saved by the Bell, desabafava "merda", gritava pelo Benfica e chamava pela menina dos "Caracóoois".

Mas o Haddock tinha desaparecido e à menina dos caracóis pouco restava além de oferecer recompensa. Faltava quem lhe abrisse os amendoins, quem a mandasse "dormir" e quem a chamasse ao som das chaves na porta - "Caracóoooois". Faltava a sua companhia na casa onde o Pai despejava más notícias à mesa de jantar, a Mãe comentava as últimas da nova melhor amiga de escritório e onde o vocabulário do Irmão pouco passava do "fixe". Era o Haddock, senhor do "bom dia" mais ensonado das traseiras da Conde Valbom, quem lhe mordiscava a orelha para acelerar os momentos mais enfastiantes.

Mas onde estava o Haddock? Ao som do Eros Ramazotti, um triste sobrevivente da paixão do Pai pela pior pop dos anos 90, e com o Irmão, como sempre de phones no carro, a menina dos caracóis seguiu por Lisboa. Ao volante, o Pai intervalava os impropérios ao estado das ruas, com mensagens de fraca expectativa - "Se calhar arranjou namorada ... ou mudou-se para um jardim maior." O Irmão? Abanava a cabeça ao ritmo da gritaria que lhe ia nos ouvidos e despejava piadas de humor duvidoso. "Olha ali ... era uma velha".

Mas se nunca a tinha convencido a deixar a primeira boneca, a trocar de mochila na escola ou a segui-lo para a firma de contabilidade, não era agora que o Pai a ia fazer mudar de ideias. O Haddock podia ser de má fama, mas não a ia deixar sozinha nos jantares de família ou na festa aos golos do Benfica. 

Começou por pensar que "há merdas que só acontecem aos outros ... não ia perder o meu melhor amigo". Ao fim da primeira hora, lembrava a "resistência no bater de asas", mas depois de ter sido expulsa dos jardins da Gulbenkian, já não passava do "pode ser que esteja bem". No final, de regresso a casa e gastos dois marcadores de feltro a oferecer recompensa, não ia feliz a menina dos cândidos caracóis.  Zangada, sem perceber para "onde terá ido o parvo", magoada, por ter sido trocada "por uma caturra oferecida", ou triste por ter perdido o "pirata mais fofo" da Conde Valbom, não encontrava forma de secar as lágrimas. Faltava-lhe qualquer coisa e nem encontrava quem culpar. Tinha sido derrotada.

A fotografia não fazia justiça ao drama. Mas o Mundo do Haddock nunca tinha sido casa para inocentes. Tinha acordado numa caixa escura, crescido atrás de grades numa sala de branco estridente e rapidamente 
 tinha sido acorrentado a um pau. Sozinho, numa varanda com vista para pequenos ecrãs de televisão, para meia dúzia de árvores e com direito a ver pombos, pardais e uma ou duas caturras a voar entre prédios.  Foi a inveja que o fez agir. Queria viajar, queria conhecer outros poisos, queria ultrapassar o Irmão em número de palavras no vocabulário e tinha de conhecer as primas papagaias. Entre os abanões no bico, a ementa monótona e os brinquedos já picados, valiam-lhe os passeios, ao ombro, entre os cândidos caracóis. Não conhecia nada melhor que um bom jantar de família a herdar passas e pinhões que a menina dos caracóis dispensava do bacalhau ou que uma bela tarde a comer milho em frente à maior televisão que conhecia. Mas naquela tarde, a curiosidade tinha sido mais forte e afinal o trinco da corrente até se revelou de abertura fácil. 

Não foi o fim da adrenalina da fuga, a falta de resistência nas asas ou o carro que quase o apanhava na primeira pausa para repouso. Também não foi a fraca percentagem de caturras em multidões de pombos, nem os ameaçadores olhares felinos. Não foi nada disso que fez Haddock voltar ao parapeito de onde nunca tinha saído.

É que o dia estava a amanhecer, era hora de gritar "vai-te lavar" para casa e para as traseiras da Conde Valbom e já sabia que sem o seu "bom dia" a menina dos caracóis não ficaria feliz. O Haddock percebeu que a melhor forma de ver o Mundo era ao abrigo dos cândidos caracóis. Sem eles, faz frio, é preciso bater muito as asas e os gatos ficam mais perto. Sem eles, os gritos pelo "Benfica" ficam sem resposta e não tinha encontrado outra orelha digna de mordiscar nos momentos de maior tensão.

Mesmo de má fama e longe de ser o mais esperto dos papagaios, o Haddock tinha descoberto que a felicidade estava nos caracóis e só faltava saber como ia convencer a menina a mostrar-lhe o Mundo. Para ajudar, e ultrapassar definitivamente o Irmão, aprendera uma palavra nova: "Juntos".



Enjoy






terça-feira, 28 de junho de 2011

Ernesto

João, Manuel, Pedro ou mesmo Paulo. Tiago, José ou qualquer nome bíblico. Qualquer outro teria servido, mas não Ernesto. Chamava à atenção, motivava piadas e, ainda antes de as entender, associações políticas. Ernesto, tardou a perceber porque raio todos deduziam que os pais eram comunistas, mas nem era história do tal guerrilheiro sul-americano que o incomodava. A irritação vinha da atenção. Porque raio tinha de ser o único a ser gozado por algo que nem dependera dele? A culpa era dos pais, por sinal João e Maria, não sua. Ernesto cresceu insatisfeito. Com o nome, com a cor castanha do cabelo, com a falta de centímetros – não era justo que jogar na NBA nunca tivesse sido uma opção viável -, com o tempo que fazia aos fins-de-semana, com o país onde nascera. Ernesto era insatisfeito.

Cresceu no ringue do Campo Mártires da Pátria e levava jeito para o pontapé na bola. Mas a fraca qualidade do cimento, dos colegas que não lhe percebiam as jogadas e das próprias bolas esgotaram-lhe a paciência. Estudou no Camões e nem tinha más notas, mas sabia que por cá a Faculdade garantia tudo – prazes, propinas, aulas chatas – menos emprego e no final decidiu dedicar-se à restauração. Afinal até gostava de cozinhar. Não tinha tanto jeito como para o pontapé na bola e a média do curso profissional até ficou aquém da conseguida no Liceu, mas havia ali qualquer coisa que o atraía. Vivia convencido que não havia no Mundo comida como a nacional e se podia trabalhar numa das áreas de excelência do malfadado país em tivera o infortúnio de nascer, tanto melhor.

Primeiro num hotel, depois num restaurante de 15€ a dose e, dois anos depois de ter feito a sua primeira sobremesa, num dos restaurantes da moda - de nome francês e com mais algarismos no preço que nas gramas de cada prato. Fez-se chef. E desistiu. Na noite em que se apresentou em público com o volumoso chapéu branco, as piadas voltaram - “A boina do outro Ernesto era preta”, “Mete-lhe uma cruz e grita ‘Revolução ou morte”, “Tens visto o Fidel?”. O que fez Ernesto? Desistiu.

Bem perto do campo onde marcara os primeiros golos, conhecia o cantinho perfeito para abrir um restaurante. Entre os Passos da Rainha e o Largo do Mastro, por trás de um monte de carros ordeiramente desordenados e com uma simpática sombra a pedir uma esplanada, Ernesto abriu a sua casa. Para a decoração contratou ajuda, para a cozinha chamou reforços e para as mesas apostou na mão de obra local - os amigos desempregados – e para gerir o empréstimo ao banco comprou calmantes. Nem faltou a festa de lançamento. Mas o Mundo faliu, os juros dispararam, os amigos desempregados começaram a reclamar contratos sem termo e os jantares fora tornaram-se em luxos incomportáveis para os seus clientes regulares. Em pouco tempo, só sobrava o “velhinho dos jaquinzinhos”. Conhecia-lhe a paixão sportinguista, a militância no CDS e aversão a coentros, mas nunca lhe dedicara mais que cinco minutos de conversa. Além de nunca dar gorjeta, o “velhinho do jaquinzinhos” pedia sempre os mesmos pratos - jaquinzinhos ou bitoque – e não a sua segunda frase começava sempre por “não”. Ernesto, não tinha paciência, mas quando o seu cliente mais chato se tornou na única cara regular na sala, decidiu dar-lhe o benefício da dúvida de dois dedos de conversa.

- “Já aqui vem há tanto tempo … Como se chama?”
- “Ambrósio”
- “Deixe-me adivinhar … Apetece-lhe algo… bom!”

O “velhinho dos jaquinzinhos” levantou-se, saiu e nunca mais voltou. E Ernesto ficou sem perceber. Conhecia-lhe o clube, a orientação política e os pratos favoritos, mas não o sabia tão sensível. Nunca tinha encontrado um cliente que ficasse tão ofendido com a oferta de um digestivo.


Enjoy

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O cantor surdo do 325

Na Cooperativa de Táxis, o render da guarda é rápido e eficaz. Dispensam-se conversas e burocracias e o processo é feito em menos de cinco minutos. O carro 345 fica no lugar 2C, o condutor do primeiro turno deixa-o atestado e o do segundo só tem de acertar banco e espelhos. Eventualmente, um ou outro elemento decorativo - uma bola de peluche para o retrovisor, uma manta para o banco ou um cd com a banda sonora do dia. As entradas e saídas da garagem são registada pela Dona Matilde, a maior central de informação de Lisboa.

Tinham sido oito horas ao volante. Engarrafamentos, escapes, colegas com falta de espaço e sempre com os olhos entre o taxímetro e o relógio. O taxímetro, porque é preciso fazer render os litros de gasóleo, o relógio porque o turno tardava em acabar. Como todas as quintas-feiras, era dia de karaoke e, como sempre, todas as horas eram de ensaio. Entre os clientes, alguns não gostavam da história das meninas que iam sair contra a vontade dos pais, outros embirravam com os cavalos de corrida e até havia quem não gostasse do cheiro de Lisboa. Mas Zé Carlos, sabia que poucos resistiam ao Hino do Benfica e, para as plateias mais dificeis, até já tinha um truque infalível: todos, queriam saber quem é o pai da criança.

Ao volante, intervalava os assobios com os versos e balançava os olhos entre a estrada e o espelho retrovisor. Todos os grandes artistas sabem que a interacção com o público é essencial, e há muito que Zé Carlos aprendera que um olhar vale mais que mil notas afinadas. Era Poeta. Do Alfredo Marceneiro ao Robbie Williams, do Frank Sinatra ao Tony Bennet, sabia todos os versos e sentia como poucos as angústias de quem se desencontrou com anjos, de quem sofria com senhoras vagabundas ou de quem tinha deixado o coração em São Francisco e nem os primeiros cabelos brancos lhe ameaçavam o ritmo. Afinal, como bem cantara o seu mentor, esses são só "saudade de tempos que já lá vão".

Mas nessa quinta-feira tudo corria mal. Primeiro não tinha percebido a reacção do rapaz que, entre o Alto do Pina e o Saldanha, lhe perguntou se conhecia a história de um tal de João Gilberto, um brasileiro tocador de viola. Depois, descobriu que os pavimentos de Lisboa lhe tinham riscado a 15ª música - uma das poucas em italiano, o umbigo do mundo. E para fechar o dia da pior maneira possível, só depois de feitas as primeiras centenas de metros em direcção a casa se apercebeu que o Cd dos ensaios tinha ficado no 325. Ainda correu, mas a Dona Matilde confirmou o que mais temia. O 325 já tinha arracado.

Nada que lhe quebrasse a moral. Pelo passeio, mesmo sem saber quem era o Lou Reed, cantarolou o Chico Fininho e uma ou outra das músicas que planeava incluir no reportório. Hoje iria brindar a plateia com a falta de estrelas no céu. Eventualmente, cantaria a história de quem fez das dunas divãs e se tudo corresse bem até fechava com a promessa de não voltar a ser fiel. Mas estava intrigado: quem seria o tal Gilberto e porque raio o rapaz do Alto do Pina se lembrara disso enquanto o ouvia cantar a Maria Albertina.

Já depois de jantar, com os passos de dança e malabarismos com o microfone ensaiados em frente ao espelho, de camisa engomada, perfumado qb e já com o telemóvel no silêncio, voltou à rua. Mas sem assobiar, sem cantarolar, de passo pesado e triste. Tinha descoberto a história do Desafinado. Afinal, para passar a mensagem não bastava decorar as letras e cantá-las com sentimento. O rapaz do Alto do Pina, não percebia que a boa música, tal como a Bossa Nova do tal Gilberto, era "muito natural" e tinha obrigação de saber que no "peito dos desafinados também bate um coração".

E nessa noite, Zé Carlos cantou como nunca. Cantou como se fosse surdo.






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domingo, 19 de junho de 2011

Bailarico


Vestiram as suas melhores roupas. Ele, uns sapatos pontiagudos, de verniz e com uma reluzente fivela de metal. Ela, de saltos, vermelhos, com reforço de graxa para disfarçar as marcas dos pontapés na calçada. As calças de ganga roçada, a camisa entre o rosa e o branco das listas e o cabelo esticado para trás de Manuel, até podiam chocar com o decotado vestido florido e o cabelo apanhado de Manuela, mas era deles a noite mais animada do ano no Largo de Carnide.

Mão esquerda bem encaixada, cotovelo em riste, Manuel não dá espaço à anca de Manuela. Passo à frente, passo atrás, ameaço para o lado e rodopios, tudo sem nunca descurar a mais sagrada das regras dos bailaricos alfacinhas: as faces não descolam. Ele, empregado de oficina a recibo verde, ela, empregada de limpeza sem direito a recibo e pais de dois: manelinho, condutor da carriz e manelinha, a estudar para psicóloga desempregada. Juntos, eram os maiores do bailarico no Largo de Carnide.

Mas naquela noite, nada lhes trocava o passo. Nem a ameaça do desemprego, nem dos cortes nos subsídios, nem a morte anunciada do Euro, a moeda que mais transtorno causou na casa dos Manéis - foi com ela que imperial chegou aos trezentos paus, um euro e meio para os modernos, e que a tabaco subiu aos oitocentos. E nem o público os atrapalhava. Grupos de jovens predadores, capazes de rapinar um fio, uma mala ou instalar a confusão em menos de um passo de dança; alcoólicos de mãos marotas; 'pseudos' de sorrisos condescendentes e vendedores da banha da cobra. Não. Manuel e Manuela, não queriam um iPhone4 com dois cartões, menos ainda queriam uns óculos de sol ReiBane ou uns anéis de luzinhas irritantes. Manuel e Manuela só queriam dançar.

Dançaram horas para esquecer a crise, para ignorar o ambiente hostil para tentarem pensar na bonança que virá depois da borrasca anunciada. Dançaram sem pensar nos snobs, sem pensar nos meliantes ou na nova subida do preço do arroz. Dançaram porque sabe bem, porque estão juntos na luta, dançaram porque já aprenderam que quando os cornos do touro são demasiado grandes para agarrar, o melhor é fintá-lo. E foram horas em fintas, reviengas como diz Manuel.

Ás primeiras horas da madrugada, depois do anónimo duo ter desaparecido do coreto, caminharam de mão dada para casa. Antes pararam para o luxo da noite: duas dessas imperiais que a moeda de Bruxelas inflacionou. Manuel até sabe que a extravagância lhe vai custar o imprescindível maço de Chesterfield que consome diariamente, mas sabe o que faz. Apetece-lhe uma última dança com Manuela e sabe que uma imperial fresquinha é suficiente para que ela se esqueça que os seus sapatos favoritos já estão a precisar de mais graxa. Sapatos novos é coisa de rico. A felicidade não.



Enjoy

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O primeiro



Vendi a Playstation. Jogaram-se três jogos de xadrez. E finalmente abri as portas da nova casa.
Por aqui já contei histórias de música, de aventuras e desventuras, de ondas perfeitas e de espumas pouco proveitosas. Agora, abro pela primeira vez as portas de uma nova casa para contar a história de um Alfacinha num Mundo à Rasca. Uma história a que nunca faltará banda sonora.



Enjoy