terça-feira, 28 de junho de 2011

Ernesto

João, Manuel, Pedro ou mesmo Paulo. Tiago, José ou qualquer nome bíblico. Qualquer outro teria servido, mas não Ernesto. Chamava à atenção, motivava piadas e, ainda antes de as entender, associações políticas. Ernesto, tardou a perceber porque raio todos deduziam que os pais eram comunistas, mas nem era história do tal guerrilheiro sul-americano que o incomodava. A irritação vinha da atenção. Porque raio tinha de ser o único a ser gozado por algo que nem dependera dele? A culpa era dos pais, por sinal João e Maria, não sua. Ernesto cresceu insatisfeito. Com o nome, com a cor castanha do cabelo, com a falta de centímetros – não era justo que jogar na NBA nunca tivesse sido uma opção viável -, com o tempo que fazia aos fins-de-semana, com o país onde nascera. Ernesto era insatisfeito.

Cresceu no ringue do Campo Mártires da Pátria e levava jeito para o pontapé na bola. Mas a fraca qualidade do cimento, dos colegas que não lhe percebiam as jogadas e das próprias bolas esgotaram-lhe a paciência. Estudou no Camões e nem tinha más notas, mas sabia que por cá a Faculdade garantia tudo – prazes, propinas, aulas chatas – menos emprego e no final decidiu dedicar-se à restauração. Afinal até gostava de cozinhar. Não tinha tanto jeito como para o pontapé na bola e a média do curso profissional até ficou aquém da conseguida no Liceu, mas havia ali qualquer coisa que o atraía. Vivia convencido que não havia no Mundo comida como a nacional e se podia trabalhar numa das áreas de excelência do malfadado país em tivera o infortúnio de nascer, tanto melhor.

Primeiro num hotel, depois num restaurante de 15€ a dose e, dois anos depois de ter feito a sua primeira sobremesa, num dos restaurantes da moda - de nome francês e com mais algarismos no preço que nas gramas de cada prato. Fez-se chef. E desistiu. Na noite em que se apresentou em público com o volumoso chapéu branco, as piadas voltaram - “A boina do outro Ernesto era preta”, “Mete-lhe uma cruz e grita ‘Revolução ou morte”, “Tens visto o Fidel?”. O que fez Ernesto? Desistiu.

Bem perto do campo onde marcara os primeiros golos, conhecia o cantinho perfeito para abrir um restaurante. Entre os Passos da Rainha e o Largo do Mastro, por trás de um monte de carros ordeiramente desordenados e com uma simpática sombra a pedir uma esplanada, Ernesto abriu a sua casa. Para a decoração contratou ajuda, para a cozinha chamou reforços e para as mesas apostou na mão de obra local - os amigos desempregados – e para gerir o empréstimo ao banco comprou calmantes. Nem faltou a festa de lançamento. Mas o Mundo faliu, os juros dispararam, os amigos desempregados começaram a reclamar contratos sem termo e os jantares fora tornaram-se em luxos incomportáveis para os seus clientes regulares. Em pouco tempo, só sobrava o “velhinho dos jaquinzinhos”. Conhecia-lhe a paixão sportinguista, a militância no CDS e aversão a coentros, mas nunca lhe dedicara mais que cinco minutos de conversa. Além de nunca dar gorjeta, o “velhinho do jaquinzinhos” pedia sempre os mesmos pratos - jaquinzinhos ou bitoque – e não a sua segunda frase começava sempre por “não”. Ernesto, não tinha paciência, mas quando o seu cliente mais chato se tornou na única cara regular na sala, decidiu dar-lhe o benefício da dúvida de dois dedos de conversa.

- “Já aqui vem há tanto tempo … Como se chama?”
- “Ambrósio”
- “Deixe-me adivinhar … Apetece-lhe algo… bom!”

O “velhinho dos jaquinzinhos” levantou-se, saiu e nunca mais voltou. E Ernesto ficou sem perceber. Conhecia-lhe o clube, a orientação política e os pratos favoritos, mas não o sabia tão sensível. Nunca tinha encontrado um cliente que ficasse tão ofendido com a oferta de um digestivo.


Enjoy

Sem comentários:

Enviar um comentário