quarta-feira, 22 de junho de 2011

O cantor surdo do 325

Na Cooperativa de Táxis, o render da guarda é rápido e eficaz. Dispensam-se conversas e burocracias e o processo é feito em menos de cinco minutos. O carro 345 fica no lugar 2C, o condutor do primeiro turno deixa-o atestado e o do segundo só tem de acertar banco e espelhos. Eventualmente, um ou outro elemento decorativo - uma bola de peluche para o retrovisor, uma manta para o banco ou um cd com a banda sonora do dia. As entradas e saídas da garagem são registada pela Dona Matilde, a maior central de informação de Lisboa.

Tinham sido oito horas ao volante. Engarrafamentos, escapes, colegas com falta de espaço e sempre com os olhos entre o taxímetro e o relógio. O taxímetro, porque é preciso fazer render os litros de gasóleo, o relógio porque o turno tardava em acabar. Como todas as quintas-feiras, era dia de karaoke e, como sempre, todas as horas eram de ensaio. Entre os clientes, alguns não gostavam da história das meninas que iam sair contra a vontade dos pais, outros embirravam com os cavalos de corrida e até havia quem não gostasse do cheiro de Lisboa. Mas Zé Carlos, sabia que poucos resistiam ao Hino do Benfica e, para as plateias mais dificeis, até já tinha um truque infalível: todos, queriam saber quem é o pai da criança.

Ao volante, intervalava os assobios com os versos e balançava os olhos entre a estrada e o espelho retrovisor. Todos os grandes artistas sabem que a interacção com o público é essencial, e há muito que Zé Carlos aprendera que um olhar vale mais que mil notas afinadas. Era Poeta. Do Alfredo Marceneiro ao Robbie Williams, do Frank Sinatra ao Tony Bennet, sabia todos os versos e sentia como poucos as angústias de quem se desencontrou com anjos, de quem sofria com senhoras vagabundas ou de quem tinha deixado o coração em São Francisco e nem os primeiros cabelos brancos lhe ameaçavam o ritmo. Afinal, como bem cantara o seu mentor, esses são só "saudade de tempos que já lá vão".

Mas nessa quinta-feira tudo corria mal. Primeiro não tinha percebido a reacção do rapaz que, entre o Alto do Pina e o Saldanha, lhe perguntou se conhecia a história de um tal de João Gilberto, um brasileiro tocador de viola. Depois, descobriu que os pavimentos de Lisboa lhe tinham riscado a 15ª música - uma das poucas em italiano, o umbigo do mundo. E para fechar o dia da pior maneira possível, só depois de feitas as primeiras centenas de metros em direcção a casa se apercebeu que o Cd dos ensaios tinha ficado no 325. Ainda correu, mas a Dona Matilde confirmou o que mais temia. O 325 já tinha arracado.

Nada que lhe quebrasse a moral. Pelo passeio, mesmo sem saber quem era o Lou Reed, cantarolou o Chico Fininho e uma ou outra das músicas que planeava incluir no reportório. Hoje iria brindar a plateia com a falta de estrelas no céu. Eventualmente, cantaria a história de quem fez das dunas divãs e se tudo corresse bem até fechava com a promessa de não voltar a ser fiel. Mas estava intrigado: quem seria o tal Gilberto e porque raio o rapaz do Alto do Pina se lembrara disso enquanto o ouvia cantar a Maria Albertina.

Já depois de jantar, com os passos de dança e malabarismos com o microfone ensaiados em frente ao espelho, de camisa engomada, perfumado qb e já com o telemóvel no silêncio, voltou à rua. Mas sem assobiar, sem cantarolar, de passo pesado e triste. Tinha descoberto a história do Desafinado. Afinal, para passar a mensagem não bastava decorar as letras e cantá-las com sentimento. O rapaz do Alto do Pina, não percebia que a boa música, tal como a Bossa Nova do tal Gilberto, era "muito natural" e tinha obrigação de saber que no "peito dos desafinados também bate um coração".

E nessa noite, Zé Carlos cantou como nunca. Cantou como se fosse surdo.






Enjoy

Sem comentários:

Enviar um comentário