segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Zé, o trompetista cego

Vivia entre a Praça da Alegria e o Parque Mayer. Sonhava nos bancos da Avenida da Liberdade.

Tinha crescido entre guitarristas de fados, putas e uma bebida que lhe parecia vinho verde. Actrizes e coristas também nunca tinham faltado. Sportinguista, ao Domingo raramente perdia a bola e se o jogo fosse à hora de outros palcos, penitenciava-se com todos os resumos. Sem saber para que servia o facebook de que os amigos tanto falavam, lembrava-se da última visita do Cherbakov e tinha saudades do velhinho Hot Clube. Diziam-lhe que era o típico tuga, e que não fosse a peculiar escolha de instrumento, poderia dar um belo fadista.

O Zé tocava trompete. Sim, o Carlos Paredes era o mais parecido que conhecia de Deus. E sim, nunca tinha ouvido um verdadeiro fado sem alma. Mas nada chegava ao som do trompete. De tristeza, dor ou alegria, quando chegava a hora de ouvir uma alma cantar, era o trompete quem oferecia a melhor voz. Miles e Chet, por sinal o nome dos dois gatos com quem partilhava o húmido T2, tinham tornado a escolha evidente e quando descobriu que até dava para pagar a renda não pensou duas vezes. A vida seria vivida ao som de bronze.

Sabia como facturar. Um bom espectáculo no Parque Mayer aguentava uns meses, com sorte aparecia uma banda de putos à procura de um quarteto e até ia sendo chamado para acompanhar em estúdio. Pagava a renda, poupava na roupa e nem era esquisito na hora de escolher o lugar no estádio. A volta para comprar comida, o "dia seguinte" no café e os noticiários mantinham o ritmo de dias que teimavam em terminar com o trompete a chorar.

Ia sabendo das novidades. Sabia que o mundo tinha falido, que o Porto se tinha safo no mercado de verão e que pior que a banca e o Sporting só mesmo uma coisa: Portugal. Trompetista remediado, mas nunca parvo, o Zé até tinha a sua conta, uma espécie de colchão, ao pé do Campo Pequeno, a proteger umas poucas centenas de euros e meia dúzia de certificados de aforro, dos que mais tinham desvalorizado. Que o Zé também nunca tinha sido acusado de ter sorte. Ouvia falar das praias africanas, das ruas de Nova Iorque e da movida de Madrid, mas nunca tinha subido de Bragança e a mais longa das investidas ao Sul acabara em Tavira.

Era cego, o Zé. Não bebia, não fumava e branca só mesmo a casaca. Mas era viciado. Precisava de doses Dizzy Gillespie para ganhar energia, os dois anos de Lee Morgan ajudavam a sossegar e o Miles servia de sobremesa. No Chet Baker encontrava o conforto quando mais precisava. Chuva ou sol, se lhe garantissem a dose de banda sonora do dia, não precisava de mais nada. Consumia no sofá da sala e só o trocava pelo verdadeiro palco dos sonhos.

Imaginava-o longo, com três ou quatro centenas de metros, mas nunca o medira. O número exacto de passos mataria o sonho e não trocava a Liberdade por nada. Era ali que sonhava. O som do vento nas árvores, a vitória do chilrear dos pardais sobre o esvoaçar das asas dos pombos e as conversas de quem lhe caminhava com indiferença. Ali, com o trompete escondido na casaca que lhe diziam "quase branca", sonhava.

Ser cego estava longe de ser fácil, mas nem por isso o Zé se importava. Desabafa e celebrava com o trompete e viajava à conta de quem passava perto da sua Liberdade. Diziam-lhe que "o mais cego é o que não quer ver" e na volta até tinham razão.

"Um tirinho de Chet, se faz favor"



Enjoy