Vestiram as suas melhores roupas. Ele, uns sapatos pontiagudos, de verniz e com uma reluzente fivela de metal. Ela, de saltos, vermelhos, com reforço de graxa para disfarçar as marcas dos pontapés na calçada. As calças de ganga roçada, a camisa entre o rosa e o branco das listas e o cabelo esticado para trás de Manuel, até podiam chocar com o decotado vestido florido e o cabelo apanhado de Manuela, mas era deles a noite mais animada do ano no Largo de Carnide.
Mão esquerda bem encaixada, cotovelo em riste, Manuel não dá espaço à anca de Manuela. Passo à frente, passo atrás, ameaço para o lado e rodopios, tudo sem nunca descurar a mais sagrada das regras dos bailaricos alfacinhas: as faces não descolam. Ele, empregado de oficina a recibo verde, ela, empregada de limpeza sem direito a recibo e pais de dois: manelinho, condutor da carriz e manelinha, a estudar para psicóloga desempregada. Juntos, eram os maiores do bailarico no Largo de Carnide.
Mas naquela noite, nada lhes trocava o passo. Nem a ameaça do desemprego, nem dos cortes nos subsídios, nem a morte anunciada do Euro, a moeda que mais transtorno causou na casa dos Manéis - foi com ela que imperial chegou aos trezentos paus, um euro e meio para os modernos, e que a tabaco subiu aos oitocentos. E nem o público os atrapalhava. Grupos de jovens predadores, capazes de rapinar um fio, uma mala ou instalar a confusão em menos de um passo de dança; alcoólicos de mãos marotas; 'pseudos' de sorrisos condescendentes e vendedores da banha da cobra. Não. Manuel e Manuela, não queriam um iPhone4 com dois cartões, menos ainda queriam uns óculos de sol ReiBane ou uns anéis de luzinhas irritantes. Manuel e Manuela só queriam dançar.
Dançaram horas para esquecer a crise, para ignorar o ambiente hostil para tentarem pensar na bonança que virá depois da borrasca anunciada. Dançaram sem pensar nos snobs, sem pensar nos meliantes ou na nova subida do preço do arroz. Dançaram porque sabe bem, porque estão juntos na luta, dançaram porque já aprenderam que quando os cornos do touro são demasiado grandes para agarrar, o melhor é fintá-lo. E foram horas em fintas, reviengas como diz Manuel.
Ás primeiras horas da madrugada, depois do anónimo duo ter desaparecido do coreto, caminharam de mão dada para casa. Antes pararam para o luxo da noite: duas dessas imperiais que a moeda de Bruxelas inflacionou. Manuel até sabe que a extravagância lhe vai custar o imprescindível maço de Chesterfield que consome diariamente, mas sabe o que faz. Apetece-lhe uma última dança com Manuela e sabe que uma imperial fresquinha é suficiente para que ela se esqueça que os seus sapatos favoritos já estão a precisar de mais graxa. Sapatos novos é coisa de rico. A felicidade não.
Enjoy
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