quarta-feira, 29 de agosto de 2012

É do pico que se vê tudo

É do pico que se vê tudo. A costa, o horizonte e a promessa das ondas que estão a chegar.

Em terra, tudo o que ficou para trás. A viagem, os buracos na estrada e as curvas em que as rodas do carro rolam ao ritmo da música a que o rádio vai dando voz. Conduz-se com a urgência de quem foge, com a ânsia de quem procura e às vezes, quando o offshore é perfeito, no melhor dos cenários. Pode ser uma estrada contorcida, verde na berma, com alcatrão por traçar e digna de património Mundial. Pode ser de terra, entre hortas e chorões, pode ser à saída de uma Nacional ou de uma pequena estrada de aldeia. Pode até ser uma marginal engarrafada. Em terra, cada um faz o seu caminho. Mais rápido ou mais lento, menos ou mais trabalhoso, em piso esburacado ou em alcatrão europeu, num BMW ou num AX, o caminho fica no parque em que a roupa é trocada - a ganga, os ténis e o algodão, por neoprene, polypropileno e borracha. O parque da última pergunta: será que vai valer a pena?

É do pico que se vê tudo. O tempo de hoje e de amanhã, a moral de quem rema ao lado e os desafios que se avizinham. É no pico que todos sonham com a onda, a manobra ou o tubo - com um bottom sem vacilos,  um toquezinho de 'calcanhar' e uma golfada de ar, sonha-se com o chapéu e a visão que vicia. Sonha-se com o abraço ao Mar. É no pico que se preparam e travam as melhores das lutas, que se sonha com o horizonte.

Em Terra, durante o caminho, convém seguir de olhos bem abertos, com atenção a cantos escuros e com atenção a bicadas. No Mar, o jogo é limpo, aberto. E do pico vê-se tudo. 

Aguentem-se sets ameaçadores, drops em seco e chapéus que se transformam em prensas. Aguentem-se locais e temperaturas nórdicas. Aguente-se tudo. No Mar, onde o jogo é aberto, a negociação faz-se frente a frente e os momentos de luxo são sempre partilhados. No Mar, é o brilho nos olhos que conta. E do pico vê-se tudo.

É no Pico que se vê tudo. Vemos se valeu a pena o caminho, se é preciso mudar de destino e até as promessas no horizonte. É no pico que mais somos surpreendidos. Com as lombas que se agigantam, com as montanhas que se revelam doces ou com a nossa capacidade de sobrevivência. É no Pico, de olhos bem abertos, que nos superamos É no pico que vendo tudo, aceitamos ou fugimos aos desafios. É no pico que se enche o peito e que se coloca tudo em jogo.

É no Pico que se vê tudo.


terça-feira, 8 de maio de 2012

Tens lume?

Bastavam os primeiros metros do dia. Ainda no empedrado que pegava à saída de casa e já a nota de cinco euros se tinha transformado em 20 cêntimos. Mesmo Alfacinha e à rasca, ainda não cedera o vício diário de vinte Marlboro Lights e sem café trocar o empedrado pelo Eixo Norte Sul era, simplesmente, desumano. 

Pouco dado a fúrias no alcatrão, é ao volante que chega o segundo choque. O gasóleo já ultrapassou o preço do litro de Sagres na cadeia do senhor Belmiro. Felizmente, o carro até é dos poupadinhos e, ainda que à rasca, o Alfacinha sempre escapara ao preço dos transportes públicos. Agora até lhe falavam de falta de carruagens, mas a ele, um afortunado, as limitações da rede até lhe davam a desculpa perfeita. Assim, sempre ouvia a TSF enquanto torrava os primeiros vinte cêntimos do dia. Só boas notícias...

Uma cadeia de supermercados que transformava promoções em motins, despedimentos em ritmo recorde, ameaças parlamentares e preços a subir. Nos intervalos, sempre chegava uma ou outra novidade do mundo da bola, mas agora até ai eram os maus a celebrar. Diariamente, a viagem até ao trabalho era curta para tanta má nova. E os primos gregos? É verdade que a Espanha também vai chamar os cobradores da mala? E como estará a Merkel a gerir as saudades da sua marioneta predilecta?

Sabia que não era o mais orientado dos Alfacinhas e o dinheiro nunca tinha estado entre as suas prioridades. Uma viagem por ano; boa ou má vida; ligeiros problemas com discos e ténis, mas tudo em doses moderadas. Agora, tinha sofrido um gratuito "finish him. O preço da electricidade tinha dobrado e prometiam o mesmo remédio para a Água. Os ordenados encolhiam a cada vacilo, chegavam novos impostos sobre a casa que estava por pagar e não faltavam taxas sobre serviços que nem sabia que tinha. 

Era com a ajuda dos tirinhos de vinte cêntimos que fazia as contas e acabava por constatar que estava entre os sortudos. Era sua a cidade onde se bebia um café à beira rio depois de uma manhã nas ondas, a cidade das mais belas europeias, vivia rodeado de bons alfacinhas e nem sequer tinha perdido o direito aos dois meses mais folgados do ano. Continuava com 25 dias de férias e nem ia notar o corte nos feriados. Mas se nos velhos amigos impressos chegavam apelos à produção - é preciso mais, dizem-lhe os senhores que amelham quase um quarto de tudo o que lhe saía do bolso - no Mundo 2.0, era bombardeado com apelos Revolução - ocupa, não consumas, vota...

Com várias décadas entre ruas e histórias de Lisboa, estava cansado de ver provas do manso temperamento dos seus vizinhos. Como poucos, conhecia os poderes da atracção de um belo dia de praia e a facilidade com que se dizia "não vai mudar nada". Ainda assim, tinha-se convencido que à sua cidade só faltava um rastilho. Uma pequena ignição para que se juntasse finalmente aos países em ebulição. Num dia bom, com a habitual ajuda dos tirinhos de vinte cêntimos, até arriscava palpites quanto a quem faria a faisca e até onde fogo poderia alastrar. Desde a faculdade que os tirinhos de vinte cêntimos o ajudavam a pensar e agora, quando todos lhe diziam que era vício de quem estava entre o porcento folgado, o ritual ganhara um encanto especial. Tinha aprendido a gostar de ouvir perguntar por lume.

Acenda-se mais um.

   

Enjoy

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Pedro

Trazia ténis e calças sujas, a camisa rasgada e nem o blusão se aproveitava - faltavam botões e um dos bolsos tinha sido arrancado. A mãe estava incrédula. Já tinha aparecido esfolado de trambolhões, com ténis estragados pela falta de jeito com a bola e até já tinha perdido dois ou três casacos, mas nunca tinha conseguido a proeza de desfazer uma muda de roupa em menos de um dia de escola. Nem o cabelo tinha escapado.

Sorridente por natureza, irritadiço por defeito e muito pouco adepto de sessões de pancadaria, o seu pequeno Pedro raramente se metia em trabalhos. Mas naquele dia tinha certamente alguma coisa para contar.

- Oh Mãe. Aconteceu-me tudo. Primeiro foi uma colega que me quis obrigar a ficar no canto dela. Levantei-me, andei e ela ficou agarrada ao meu bolso. Não sei onde foram parar os botões. A camisa? Foi logo a seguir. Misturei-me com os meninos das t-shirts e trocámos uns empurrões. Se me magoei? Nem por isso. Ganhei? Ninguém ganhou, mas a camisa ficou mal tratada ...

Uma colega apegada nem seria novidade e uma sessão de empurrões é um lamentável fardo na chegada das hormonas. Mas as calças e os ténis estavam mesmo muito sujos. O cabelo estava demasiado desgrenhado e a respiração ofegante fazia disparar todos os alarmes sanguíneos. A história ainda não estava toda contada.

- Foi a Madalena ... a mais bonita do grupo das t-shirts. No meio da confusão, não a vi sair. Corri aos bancos de jardim de que ela gosta. Mas não só não estava, como tropecei. Corri à pastelaria dos croissants, mas também não tinha ido lanchar. Ainda corri de volta ao pátio do liceu. Fartei-me de correr...

Tudo bem. Queda no jardim, tristemente banal. Correrias, também. Mas o que raio tinha a Madalena para o fazer correr tão desenfreadamente? Teria o pequeno Pedro descoberto os recantos menos iluminados dos pátios dos liceus?

- Cada um corre pelo que quer.

Deixou-se desarmar pela prontidão da resposta e discretamente até aprovou a irreverência do cada vez menos pequeno Pedro. Se queria correr, que corresse. Se não se importava de cair e trocar empurrões nos corredores, boa sorte. E se corria pela Madalena, alguma magia a menina teria. Essencial era que fosse aprendendo pelo caminho. Agora a lição era simples - entre correrias, é preciso recuperar a higiene corporal, sarar feridas, recuperar o equipamento e planear a escolha da próxima rota.

- Mãe, pior que tudo isso é arranjar coragem para voltar a correr.

Enjoy

domingo, 1 de abril de 2012

Lisboa

Não é fácil calcorrear os passeios de Lisboa. A calçada é gira, mas esburacada. O terreno é inclinado. E o festim para os olhos, não compensa a curta linha de Metro. Ainda assim, pasme-se, há quem tenha orgulho em lhe conhecer os segredos.

Em Lisboa, há quem se perca nos recantos mais escuros, quem se vicie nas esplanadas e quem ceda ao ritmo do seu triste Fado. Em Lisboa, também não falta quem vingue, quem lhe aproveite o Sol e lhe promova a beleza.

A direito, a ser embalado ou a escalar a Rua das Pretas, sobreviver em Lisboa não é fácil e a esquizofrenia da sua vida pode tornar-se contagiante. A cidade do Príncipe Real, tem sem-abrigo nos Restauradores. A cidade que nasceu com Rio, Mar e Sintra, tem prédios devolutos no Saldanha. A cidade do Castelo tem o Colombo.

A Lisboa dos Pingo Doce, tem as mercearias dos antónios. A Lisboa da Segunda Circular, tem mesmo uma Ponte Sobre o Tejo. A Lisboa do Jardim da Estrela também tem Docas. Lisboa, cidade que o Alfacinha sempre ouviu ao som de Paredes, acolheu os Delfins. A cidade que se ajoelhou para o Ratzinger, mas fez revoluções sem tiros. Um cravo? Zero mortos? E um regime deposto? Só em Lisboa.

Longe de ser uma autoridade no assunto, o Alfacinha até sabia duas ou três coisas da história da cidade. Sabia que em nome de um dos seus primeiros heróis, apresentava a mais triste das praças. Sabia que de Belém tinham saído loucos à procura de Terra e a história do Largo do Carmo. Sabia que a capital do país falido tinha sido de Camilo e de Pessoa. Sabia que a capital do país do Aníbal, apresentava Ronaldos e Mourinhos. O Alfacinha também não se esquecia que a sua Lisboa era associada a Durão Barroso e que no currículo tinha a censura a um livro de prémio Nobel. Em Lisboa já se tinham cometido as maiores das atrocidades, mas também tinha sido a primeira a não ter pena de morte.

Longe de ser a mais fácil das cidades e sendo capaz de moer o ritmo ao mais convicto dos peões, nunca o Alfacinha tinha pensado em trocar. Londres e Maputo dificilmente poderiam ser mais tentadoras, mas no máximo ponderara uma visita prolongada. Nunca uma substituição. E afinal, o que o prendia? O desafio? A vista? O luxo de estar entre Sintra e uma costa com praias de luxo? Vivia convencido que bastava balanço para sobreviver e que com um bocadinho de persistência ainda iria ver oportunidades na sua Lisboa. Cuidava-lhe a higiene, apregoava-lhe a beleza e nunca lhe poupava elogios. Longe de lhe domar todas as colinas, nunca o Alfacinha tinha pensado em jogar noutras ruas. Lisboa tinha-lhe dado o nome, o feitio e o suficiente para saber que às vezes nem é preciso muito para se poder ter tudo.

Enjoy

segunda-feira, 19 de março de 2012

Life On Mars

Ser a Terra o único dos planetas com inquilinos sempre me pareceu o maior dos desperdícios. Tanto espaço para um Mundo? Tanto espaço para só reinar uma só espécie?

Aos Domingos, dizem que somos feitos à imagem de Deus e nem colocam a hipótese de existirem "homenzinhos verdes". Nos cafés, perder tempo a pensar no assunto é coisa de quem foge aos grandes dilemas: foi bola na mão ou mão na bola? E a verdade é que quem luta para sobreviver neste não perde tempo a pensar noutros planetas. Mas haverá mesmo vida em Marte?

Por cá, passámos das planícies africanas para os T0 com vista para lado nenhum e fizemos o que nem o tal do Deus arriscou - moldámos a terra à nossa imagem. Roubámos mar onde foi preciso, poluímos onde precisámos de parar e nunca perdemos mais que quinze minutos a escolher entre uma floresta ou uma auto-estrada.

Por cá, dizem os livros, tivemos uma geração de "Paz e Amor" e umas quatro ou cinco marcadas por guerras. Marcadas por crises económicas, vamos para a segunda. E nem vale a pena contar com as largas centenas de anos que perdemos a torturar os nossos. Curamos o incurável, ampliamos sentidos e sobrevivemos a quase todas as intempéries. Quase todas.

Safámo-nos bem? Era engraçado ter termo de comparação. Como terão feito os vizinhos? Será que a velha história da cobiçada galinha se aplica? Como será a vida com outras regras e outros jogadores? Nós por cá, teimamos em não aprender, em perder demasiado tempo em guerras e sempre pouco atentos aos amores. Defeito genético? Conseguimos seguir ao minuto o que se faz no hemisfério oposto, exportamos letras, sons e imagens graças ao mundo www. e até praias vemos em livefeed. Perdemos demasiado tempo entre os www. e pouco nas verdadeiras praias? Muito provavelmente. Não as sabemos estimar? Garantido.

O nosso melhor cartão de visita? A música. Seria publicidade enganosa recorrer a um dos sinfónicos, mas podemos mostrar a nossa genialidade com o Sketches of Spain, o nosso rasgo com o Are You Experienced ou a nossa megalomania com o The Wall. Podemos exibir a nossa resistência com o Battle of LA ou com o Exodus. Podemos exibir o Jimmy Paige, o Freddie Mercury ou a Aretha Franklin ou o arsenal tecnológico do Sound of Silver.

Haverá vida em Marte?




Enjoy