segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Pedro

Trazia ténis e calças sujas, a camisa rasgada e nem o blusão se aproveitava - faltavam botões e um dos bolsos tinha sido arrancado. A mãe estava incrédula. Já tinha aparecido esfolado de trambolhões, com ténis estragados pela falta de jeito com a bola e até já tinha perdido dois ou três casacos, mas nunca tinha conseguido a proeza de desfazer uma muda de roupa em menos de um dia de escola. Nem o cabelo tinha escapado.

Sorridente por natureza, irritadiço por defeito e muito pouco adepto de sessões de pancadaria, o seu pequeno Pedro raramente se metia em trabalhos. Mas naquele dia tinha certamente alguma coisa para contar.

- Oh Mãe. Aconteceu-me tudo. Primeiro foi uma colega que me quis obrigar a ficar no canto dela. Levantei-me, andei e ela ficou agarrada ao meu bolso. Não sei onde foram parar os botões. A camisa? Foi logo a seguir. Misturei-me com os meninos das t-shirts e trocámos uns empurrões. Se me magoei? Nem por isso. Ganhei? Ninguém ganhou, mas a camisa ficou mal tratada ...

Uma colega apegada nem seria novidade e uma sessão de empurrões é um lamentável fardo na chegada das hormonas. Mas as calças e os ténis estavam mesmo muito sujos. O cabelo estava demasiado desgrenhado e a respiração ofegante fazia disparar todos os alarmes sanguíneos. A história ainda não estava toda contada.

- Foi a Madalena ... a mais bonita do grupo das t-shirts. No meio da confusão, não a vi sair. Corri aos bancos de jardim de que ela gosta. Mas não só não estava, como tropecei. Corri à pastelaria dos croissants, mas também não tinha ido lanchar. Ainda corri de volta ao pátio do liceu. Fartei-me de correr...

Tudo bem. Queda no jardim, tristemente banal. Correrias, também. Mas o que raio tinha a Madalena para o fazer correr tão desenfreadamente? Teria o pequeno Pedro descoberto os recantos menos iluminados dos pátios dos liceus?

- Cada um corre pelo que quer.

Deixou-se desarmar pela prontidão da resposta e discretamente até aprovou a irreverência do cada vez menos pequeno Pedro. Se queria correr, que corresse. Se não se importava de cair e trocar empurrões nos corredores, boa sorte. E se corria pela Madalena, alguma magia a menina teria. Essencial era que fosse aprendendo pelo caminho. Agora a lição era simples - entre correrias, é preciso recuperar a higiene corporal, sarar feridas, recuperar o equipamento e planear a escolha da próxima rota.

- Mãe, pior que tudo isso é arranjar coragem para voltar a correr.

Enjoy

domingo, 1 de abril de 2012

Lisboa

Não é fácil calcorrear os passeios de Lisboa. A calçada é gira, mas esburacada. O terreno é inclinado. E o festim para os olhos, não compensa a curta linha de Metro. Ainda assim, pasme-se, há quem tenha orgulho em lhe conhecer os segredos.

Em Lisboa, há quem se perca nos recantos mais escuros, quem se vicie nas esplanadas e quem ceda ao ritmo do seu triste Fado. Em Lisboa, também não falta quem vingue, quem lhe aproveite o Sol e lhe promova a beleza.

A direito, a ser embalado ou a escalar a Rua das Pretas, sobreviver em Lisboa não é fácil e a esquizofrenia da sua vida pode tornar-se contagiante. A cidade do Príncipe Real, tem sem-abrigo nos Restauradores. A cidade que nasceu com Rio, Mar e Sintra, tem prédios devolutos no Saldanha. A cidade do Castelo tem o Colombo.

A Lisboa dos Pingo Doce, tem as mercearias dos antónios. A Lisboa da Segunda Circular, tem mesmo uma Ponte Sobre o Tejo. A Lisboa do Jardim da Estrela também tem Docas. Lisboa, cidade que o Alfacinha sempre ouviu ao som de Paredes, acolheu os Delfins. A cidade que se ajoelhou para o Ratzinger, mas fez revoluções sem tiros. Um cravo? Zero mortos? E um regime deposto? Só em Lisboa.

Longe de ser uma autoridade no assunto, o Alfacinha até sabia duas ou três coisas da história da cidade. Sabia que em nome de um dos seus primeiros heróis, apresentava a mais triste das praças. Sabia que de Belém tinham saído loucos à procura de Terra e a história do Largo do Carmo. Sabia que a capital do país falido tinha sido de Camilo e de Pessoa. Sabia que a capital do país do Aníbal, apresentava Ronaldos e Mourinhos. O Alfacinha também não se esquecia que a sua Lisboa era associada a Durão Barroso e que no currículo tinha a censura a um livro de prémio Nobel. Em Lisboa já se tinham cometido as maiores das atrocidades, mas também tinha sido a primeira a não ter pena de morte.

Longe de ser a mais fácil das cidades e sendo capaz de moer o ritmo ao mais convicto dos peões, nunca o Alfacinha tinha pensado em trocar. Londres e Maputo dificilmente poderiam ser mais tentadoras, mas no máximo ponderara uma visita prolongada. Nunca uma substituição. E afinal, o que o prendia? O desafio? A vista? O luxo de estar entre Sintra e uma costa com praias de luxo? Vivia convencido que bastava balanço para sobreviver e que com um bocadinho de persistência ainda iria ver oportunidades na sua Lisboa. Cuidava-lhe a higiene, apregoava-lhe a beleza e nunca lhe poupava elogios. Longe de lhe domar todas as colinas, nunca o Alfacinha tinha pensado em jogar noutras ruas. Lisboa tinha-lhe dado o nome, o feitio e o suficiente para saber que às vezes nem é preciso muito para se poder ter tudo.

Enjoy