terça-feira, 8 de maio de 2012

Tens lume?

Bastavam os primeiros metros do dia. Ainda no empedrado que pegava à saída de casa e já a nota de cinco euros se tinha transformado em 20 cêntimos. Mesmo Alfacinha e à rasca, ainda não cedera o vício diário de vinte Marlboro Lights e sem café trocar o empedrado pelo Eixo Norte Sul era, simplesmente, desumano. 

Pouco dado a fúrias no alcatrão, é ao volante que chega o segundo choque. O gasóleo já ultrapassou o preço do litro de Sagres na cadeia do senhor Belmiro. Felizmente, o carro até é dos poupadinhos e, ainda que à rasca, o Alfacinha sempre escapara ao preço dos transportes públicos. Agora até lhe falavam de falta de carruagens, mas a ele, um afortunado, as limitações da rede até lhe davam a desculpa perfeita. Assim, sempre ouvia a TSF enquanto torrava os primeiros vinte cêntimos do dia. Só boas notícias...

Uma cadeia de supermercados que transformava promoções em motins, despedimentos em ritmo recorde, ameaças parlamentares e preços a subir. Nos intervalos, sempre chegava uma ou outra novidade do mundo da bola, mas agora até ai eram os maus a celebrar. Diariamente, a viagem até ao trabalho era curta para tanta má nova. E os primos gregos? É verdade que a Espanha também vai chamar os cobradores da mala? E como estará a Merkel a gerir as saudades da sua marioneta predilecta?

Sabia que não era o mais orientado dos Alfacinhas e o dinheiro nunca tinha estado entre as suas prioridades. Uma viagem por ano; boa ou má vida; ligeiros problemas com discos e ténis, mas tudo em doses moderadas. Agora, tinha sofrido um gratuito "finish him. O preço da electricidade tinha dobrado e prometiam o mesmo remédio para a Água. Os ordenados encolhiam a cada vacilo, chegavam novos impostos sobre a casa que estava por pagar e não faltavam taxas sobre serviços que nem sabia que tinha. 

Era com a ajuda dos tirinhos de vinte cêntimos que fazia as contas e acabava por constatar que estava entre os sortudos. Era sua a cidade onde se bebia um café à beira rio depois de uma manhã nas ondas, a cidade das mais belas europeias, vivia rodeado de bons alfacinhas e nem sequer tinha perdido o direito aos dois meses mais folgados do ano. Continuava com 25 dias de férias e nem ia notar o corte nos feriados. Mas se nos velhos amigos impressos chegavam apelos à produção - é preciso mais, dizem-lhe os senhores que amelham quase um quarto de tudo o que lhe saía do bolso - no Mundo 2.0, era bombardeado com apelos Revolução - ocupa, não consumas, vota...

Com várias décadas entre ruas e histórias de Lisboa, estava cansado de ver provas do manso temperamento dos seus vizinhos. Como poucos, conhecia os poderes da atracção de um belo dia de praia e a facilidade com que se dizia "não vai mudar nada". Ainda assim, tinha-se convencido que à sua cidade só faltava um rastilho. Uma pequena ignição para que se juntasse finalmente aos países em ebulição. Num dia bom, com a habitual ajuda dos tirinhos de vinte cêntimos, até arriscava palpites quanto a quem faria a faisca e até onde fogo poderia alastrar. Desde a faculdade que os tirinhos de vinte cêntimos o ajudavam a pensar e agora, quando todos lhe diziam que era vício de quem estava entre o porcento folgado, o ritual ganhara um encanto especial. Tinha aprendido a gostar de ouvir perguntar por lume.

Acenda-se mais um.

   

Enjoy