quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Haddock

Impressa numa folha A4, forrada a fita adesiva e pespegada num dos postes da Avenida de Berna, a fotografia não fazia justiça à história.

Haddock, um cinzento papagaio, tinha fugido deixando para trás a menina dos cândidos caracóis. Uma janela aberta, o apelo de alguma Caturra ou a simples curiosidade, tinham-no levado a abandonar o poleiro onde passara os últimos seis anos. Papagaio de bom gosto, os jardins da Gulbenkian seriam sempre uma das primeiras paragens.  Seguir-se-iam, o da Estrela e do o Príncipe Real. Já chorava a menina dos cândidos caracóis.

Mas a fotografia não fazia justiça à história. Em casa, choravam os caracóis e nem a promessa de recompensa fazia o telefone tocar. Haddock, hoje pirata de má fama nas traseiras da Conde Valbom, tinha acompanhado as suas tardes em casa, os jantares de família e as noites de futebol. Tinha aprendido a imitar o sino do Saved by the Bell, desabafava "merda", gritava pelo Benfica e chamava pela menina dos "Caracóoois".

Mas o Haddock tinha desaparecido e à menina dos caracóis pouco restava além de oferecer recompensa. Faltava quem lhe abrisse os amendoins, quem a mandasse "dormir" e quem a chamasse ao som das chaves na porta - "Caracóoooois". Faltava a sua companhia na casa onde o Pai despejava más notícias à mesa de jantar, a Mãe comentava as últimas da nova melhor amiga de escritório e onde o vocabulário do Irmão pouco passava do "fixe". Era o Haddock, senhor do "bom dia" mais ensonado das traseiras da Conde Valbom, quem lhe mordiscava a orelha para acelerar os momentos mais enfastiantes.

Mas onde estava o Haddock? Ao som do Eros Ramazotti, um triste sobrevivente da paixão do Pai pela pior pop dos anos 90, e com o Irmão, como sempre de phones no carro, a menina dos caracóis seguiu por Lisboa. Ao volante, o Pai intervalava os impropérios ao estado das ruas, com mensagens de fraca expectativa - "Se calhar arranjou namorada ... ou mudou-se para um jardim maior." O Irmão? Abanava a cabeça ao ritmo da gritaria que lhe ia nos ouvidos e despejava piadas de humor duvidoso. "Olha ali ... era uma velha".

Mas se nunca a tinha convencido a deixar a primeira boneca, a trocar de mochila na escola ou a segui-lo para a firma de contabilidade, não era agora que o Pai a ia fazer mudar de ideias. O Haddock podia ser de má fama, mas não a ia deixar sozinha nos jantares de família ou na festa aos golos do Benfica. 

Começou por pensar que "há merdas que só acontecem aos outros ... não ia perder o meu melhor amigo". Ao fim da primeira hora, lembrava a "resistência no bater de asas", mas depois de ter sido expulsa dos jardins da Gulbenkian, já não passava do "pode ser que esteja bem". No final, de regresso a casa e gastos dois marcadores de feltro a oferecer recompensa, não ia feliz a menina dos cândidos caracóis.  Zangada, sem perceber para "onde terá ido o parvo", magoada, por ter sido trocada "por uma caturra oferecida", ou triste por ter perdido o "pirata mais fofo" da Conde Valbom, não encontrava forma de secar as lágrimas. Faltava-lhe qualquer coisa e nem encontrava quem culpar. Tinha sido derrotada.

A fotografia não fazia justiça ao drama. Mas o Mundo do Haddock nunca tinha sido casa para inocentes. Tinha acordado numa caixa escura, crescido atrás de grades numa sala de branco estridente e rapidamente 
 tinha sido acorrentado a um pau. Sozinho, numa varanda com vista para pequenos ecrãs de televisão, para meia dúzia de árvores e com direito a ver pombos, pardais e uma ou duas caturras a voar entre prédios.  Foi a inveja que o fez agir. Queria viajar, queria conhecer outros poisos, queria ultrapassar o Irmão em número de palavras no vocabulário e tinha de conhecer as primas papagaias. Entre os abanões no bico, a ementa monótona e os brinquedos já picados, valiam-lhe os passeios, ao ombro, entre os cândidos caracóis. Não conhecia nada melhor que um bom jantar de família a herdar passas e pinhões que a menina dos caracóis dispensava do bacalhau ou que uma bela tarde a comer milho em frente à maior televisão que conhecia. Mas naquela tarde, a curiosidade tinha sido mais forte e afinal o trinco da corrente até se revelou de abertura fácil. 

Não foi o fim da adrenalina da fuga, a falta de resistência nas asas ou o carro que quase o apanhava na primeira pausa para repouso. Também não foi a fraca percentagem de caturras em multidões de pombos, nem os ameaçadores olhares felinos. Não foi nada disso que fez Haddock voltar ao parapeito de onde nunca tinha saído.

É que o dia estava a amanhecer, era hora de gritar "vai-te lavar" para casa e para as traseiras da Conde Valbom e já sabia que sem o seu "bom dia" a menina dos caracóis não ficaria feliz. O Haddock percebeu que a melhor forma de ver o Mundo era ao abrigo dos cândidos caracóis. Sem eles, faz frio, é preciso bater muito as asas e os gatos ficam mais perto. Sem eles, os gritos pelo "Benfica" ficam sem resposta e não tinha encontrado outra orelha digna de mordiscar nos momentos de maior tensão.

Mesmo de má fama e longe de ser o mais esperto dos papagaios, o Haddock tinha descoberto que a felicidade estava nos caracóis e só faltava saber como ia convencer a menina a mostrar-lhe o Mundo. Para ajudar, e ultrapassar definitivamente o Irmão, aprendera uma palavra nova: "Juntos".



Enjoy